Sob o Véu de Neve
A vila de Valenhold celebrava o fim do inverno. As tochas tremulavam nas varandas, o vinho fervia em barris de ferro, e o som das violas subia entre as casas de pedra. Era uma noite de alívio — o primeiro degelo do ano. O ar cheirava a madeira queimada e carne salgada, o que bastava para fingirem que não havia nada além daquelas montanhas.
Elias observava Marenna entre as chamas e danças. O vestido dela rodava com o vento, e cada riso parecia afastar o frio.
— Está olhando demais — zombou Orren, amigo de copos e caçadas.
— E você fala demais — retrucou Elias, sorrindo.
Mas quando os olhos dela encontraram os dele, o tempo se partiu em silêncio. Foi breve — o tipo de instante que os deuses invejam.
Mais tarde, um rapaz alto, com casaco de pele, aproximou-se de Marenna. Tinha o sorriso fácil dos insolentes. Tocou-lhe a cintura, murmurou algo, e ela riu de constrangimento. Elias viu de longe, o punho fechando-se sozinho.
— Deixa, Elias, é só brincadeira — tentou Orren.
Mas o vinho e o orgulho queimavam igual.
Elias cruzou a praça, empurrou o rival e o derrubou sobre o barril. O som de madeira rachando abafou os risos. Marenna gritou seu nome, mas ele já a puxava pela mão, fugindo por entre as casas, como ladrão de um pecado.
Correram até o limite da vila, onde a estrada virava gelo e o bosque se tornava muralha. Atrás, a festa continuava, pequena, distante.
— Você é louco — sussurrou ela, ofegante.— Louco por você.
Ela riu, e o riso dela foi mais quente que o vinho.
Atravessaram o portão velho, subindo por um caminho de neve que brilhava à luz da lua. O silêncio os cercava — pesado, puro. A cada passo, o som de seus corações parecia ecoar mais alto que o vento.
No topo, havia um rio congelado. A lua refletia-se ali como um espelho partido.
— É lindo — disse ela.
— É nosso — respondeu ele.
Os dedos se tocaram. As luvas úmidas, o frio cortante, e ainda assim o calor. O beijo veio tímido, entre respirações e arrepios.
Foi quando o vento mudou.
Um som leve, quase um canto, percorreu as árvores. O nome dela.
“Marenna…”
Uma vez.
Depois outra.
Mais suave.
Ela ergueu o rosto.
— Elias, ouviu?
— O vento.
Mas o vento não fala.
De repente, o ar se moveu, frio demais para ser natural. O cabelo de Marenna flutuou, como se o mundo prendesse a respiração. Entre o vapor do gelo, algo se formou — primeiro um véu de névoa, depois uma silhueta. Feminina. Alta. Curvada como se carregasse séculos de dor.
Elias piscou, e a névoa sumiu.
Só o bosque. Só o frio.
Eles começaram a voltar, apressados. O chão rangeu sob as botas.
— Elias, não gosto daqui — ela murmurou. — Parece que… tem alguém…
— Shh. Só mais um pouco.
Um galho estalou atrás deles.
Viraram-se.
Entre as árvores, a bruma se movia contra o vento.
E foi ali que a viram — não por inteiro, mas o suficiente para desejar nunca ter olhos.
O cabelo dela, longo e escuro, não caía: flutuava, mexendo-se como se a própria névoa respirasse.
Os braços, pálidos, estendiam-se com dedos longos demais, curvados em garras finas, negras nas pontas.
E, por um instante, a lua mostrou sua pele, translúcida como vidro de sepulcro.
Marenna recuou, tropeçando. Elias agarrou-a, puxando-a pela mão, mas o chão estava vivo — as raízes se moviam como veias.
— Corre! — gritou ele.
Correram, mas o som os seguia: um arrastar suave, ritmado, quase humano.
Um riso ecoou. Lento. Doce.
Um riso de mulher.
O frio cresceu até que o ar ferisse os pulmões. Elias sentiu algo tocar-lhe o pescoço — um toque gélido, que queimava como gelo seco. O corpo dele travou, e o vapor de sua respiração virou gelo antes de cair.
Marenna virou-se, os olhos arregalados, e viu apenas uma sombra feminina envolvê-lo, o cabelo movendo-se em todas as direções como fumaça viva. O rosto dela nunca ficou claro — apenas a curva de um sorriso pálido e os olhos… dois buracos de luar invertido.
Marenna gritou.
E o grito se quebrou, engolido pelo frio.
Quando os aldeões encontraram os corpos pela manhã, estavam lado a lado, de mãos dadas, cobertos por uma fina camada de gelo.
O clérigo local disse que morreram congelados.
Ninguém soube explicar as marcas de garras nas árvores pequenas demais para ursos. Quaisquer pegadas foram apagadas pelos neve do início da manhã… os corpos estavam cobertos de gelo e próximo a uma pedra escura coberta por flores mortas que não congelavam jamais.